quarta-feira, 21 de maio de 2014

À minha imagem

Psicóloga Fernanda Seabra

Selfies se popularizam, ganham novas versões, mas o excesso pode causar danos

Desde que mundo é mundo – o que ficou bem mais claro com a invenção da câmera fotográfica – a imagem sempre foi o calcanhar de Aquiles da humanidade. Não por acaso, um dos mais populares mitos é justamente o de Narciso que, ao ver sua imagem, acaba se apaixonando por si mesmo. E não se trata de exceções, atire a primeira pedra quem já não ficou horas do espelho para uma fotografia de poucos segundos. Com as redes sociais, o excesso não está mais nos posts do outro, mas na forma como nos relacionamos com nossas próprias imagens. No ano passado, as selfies – termo para designar autorretratos para postagens nas redes sociais – ficaram no topo da popularidade. Desde então, surgiram as healthies (selfies de corpos saudáveis) e as usies, as fotografias de 2 ou mais pessoas. Ao observar as redes sociais, é possível encontrar de tudo um pouco – desde as que procuram o equilíbrio ao postarem suas imagens até aquelas que têm autorretratos em enterros, no pós-sexo, em acidentes graves e até quem já tenha tentado o suicídio por não conseguir a selfie perfeita. A tênue linha entre o excesso e a diversão tem revelado que nem todo mundo sabe lidar bem com sua autoimagem.
 
Vamos à pergunta básica, afinal o que há por trás de uma selfie? Em primeiro lugar, é uma forma do ser humano se relacionar com as novas tecnologias, bem como o mundo e as pessoas ao seu redor. A psicóloga Mônica Vidal explica que uma pessoa madura geralmente posta selfies mais espontâneas, em vez daqueles estrategicamente elaboradas e editadas. Pessoas mais inseguras tendem a postar selfies mais sexualizados e exibicionistas com o intuito de receber o maior número de curtidas e, com isso, obter uma falsa percepção de que são amadas. “E quanto maior o número de comentários e curtidas, maior essa ilusão, o que reforça o comportamento narcisista de maneira cíclica.”
 
Logicamente, há milhares de exceções e surpresas. Uma delas é a do padre que posta uma selfie com os noivos bem no meio da cerimônia de casamento. É surpreendente vê-lo pedir um minuto para a fotografia e avisar que, dali a poucos segundos, a foto estará no seu Instagram e Facebook. O padre Fernando Lopes Gomes, da paróquia Santo Inácio de Loyola, no bairro Cidade Jardim, realizou, no ano passado 198 casamentos, todos com selfies. Ele tem pavor à pecha de exibicionista ou modista. Diz que a selfie integra um trabalho maior de personalização com os fiéis de sua paróquia, em que as histórias de amor, no caso de casamento, estão sendo celebradas diante de Deus. “Ao fazer a selfie, mostramos o casamento que está ocorrendo e precisa ser divulgado porque é uma celebração de algo que a humanidade necessita ver como algo bom. Atualmente, vemos as redes sociais serem tão mal usadas.”
 
Gomes, também, não se sente muito confortável com adjetivo de moderno, mas o fato é que não há concorrente em outras igrejas, pelo menos que ele saiba. Já sobre a repercussão dentro da igreja, é ainda mais econômico nas palavras: “Estão acolhendo muito positivamente”. 
 
Quem gosta de selfies, não esconde que também é uma forma de exibicionismo, mas nem por isso pode-se perder o bom senso. As amigas Carolina Rocha Andrade, 24, e Cristiane Teixeira, 20, são adeptas das usies e adoram tirar fotos juntas. Estudantes de direito, querem comentários positivos para as suas imagens. Gastam horas para escolher as melhores fotos. São 2, no máximo, nos dias úteis e várias nos finais de semana. Procuram evitar as apelativas. “Nosso limite é o que achamos vulgar. Não postamos fotos com decotes, com roupas exageradas, nada apelativo. E também nada de frases sobre carência ou ser solteiro”, explica Carolina.
 
No caso da jornalista Ludmilla de Carvalho Rangel 27, o fascínio pelo autorretrato está presente desde sempre em sua vida, mas a onda da selfie é algo bem restrito em seu cotidiano. Ela integra um grupo de pessoas que acredita que nem tudo que se faz deve ser compartilhado nas redes sociais. As exceções são em momentos especialíssimos e, nessa hora, Ludmilla prefere o junta-junta dos amigos para as suas postagens. O que vale nesses momentos é a espontaneidade. “Tiro poucas fotos e sempre escolho a primeira. Não precisa ser aquela foto arrumadinha, posada. Acho que postar fotos insistentemente é cansativo.”
 
Eis um ponto que os adeptos de postagens de muitas selfies ignoram, imagem em excesso também cansa. A psicóloga Mônica Vidal chama a atenção para o fato de quem posta selfies demais acaba causando o efeito oposto ao desejado – afastando e irritando os amigos, que podem vir a se tornar ex-amigos. Para outra especialista, a psicóloga Fernanda Seabra, o excesso de selfies pode indicar um caminho que é negativo, o da desconexão com a alma para uma conexão exagerada com a imagem. “A conexão com a alma é quando construo o meu mundo interno e tenho segurança do que sou, do que gosto, das minhas fraquezas, habilidades. Não preciso mostrar para o outro nem o meu lado bacana, nem o meu lado feio. Só aprender a lidar com os 2 lados e reconhecê-los. Automaticamente, quem se relacionar comigo vai conhecê-los.”
 
Há pessoas que reconhecem o fascínio pelos autorretratos e dizem que já passaram por situações de conflito por causa disso. Esse foi o caso da empresária Dafne Pereira, 35. O encanto por fotos vem da infância e ela conta, aos risos, que sempre dava um jeito de frequentar festas só para aparecer em todas as fotos. Adepta das redes sociais desde o Orkut, acostumou-se a divulgar muitas imagens em todos os momentos da vida. Atualmente, grávida de 7 meses, faz do Facebook e Instagram uma espécie de diário. “Agora, com a gravidez, estou num momento sublime, que nada me importa, mas antes, quando começava a me expor demais, dava uma pirada e saía das redes sociais”, diz. 
 
Esses momentos de crise foram resolvidos quando Dafne fez um texto, que define como bem direto, para as pessoas que começaram a criticá-la pelo que consideravam superexposição na postagem de imagens. “Quase não escrevo, o que gosto é de divulgar minhas fotos. Quem não está gostando e acha que é exagero, é só não me seguir.” Quando posta fotos de antes da gravidez, Dafne diz que recebe cerca de 20 curtidas. Ao mostrar a barriga, já chegou a ter 100 curtidas. “Outro dia, postei uma campanha de vacinação e tive poucas curtidas”, conta. 

Já o coach e treinador pessoal Bruno Carcara é adepto de healthies, em que o principal conceito é aliar a identidade a um corpo saudável. Ele não esconde que sempre gostou de fotografias e de registrar todos os momentos de sua vida. Começou a utilizar as imagens para divulgar a profissão e teve um retorno grande de pessoas procurando seu trabalho, que consiste em montar dietas e fazer treinamentos personalizados, além de ensinar a ter vida mais saudável e respeito ao corpo. Mesmo assim, o número de selfies em sua página no Facebook já levou muita gente a chamá-lo de exibicionista e narcisista. “Nunca me importei, porque estou fazendo o que gosto e divulgando o meu trabalho. As pessoas criticam aquilo que invejam”, diz. 
 
Quem também descobriu novas utilidades para as selfies foi a empresária Thaís de Andrade Cardoso, 27, que utiliza as imagens para divulgar a marca própria de roupas. Mesmo assim, somente em suas redes sociais profissionais, porque, nas pessoais, só valem fotos com amigos e gente mais próxima, de preferência sempre em grupo. “Através das selfies, estou tendo a oportunidade de divulgar o que produzo. Pessoalmente, não gosto de tirar fotos sozinha.” 
 
Não importa se a pessoa gosta de postar muitas selfies ou se as imagens são em menor número, o que especialistas indicam é que sempre tem de haver a reflexão cotidiana de como cada um lida com as redes sociais e suas ferramentas. Segundo Fernanda Seabra, o abuso das selfies pode provocar uma dificuldade em determinadas pessoas em viver a vida real, já que no virtual tudo é glamouroso, sem fragilidades, calcado na imagem. “Dependendo do grau de adoecimento, essa dificuldade pode ser um transtorno em que a pessoa precisa se expor para que tenha a sensação de que está sendo vista.” A autoexposição, reflete Fernanda, pode estar associada à baixa autoestima em que as pessoas precisam que suas imagens recebam likes para se sentirem valorizadas e validadas. 
 
Segundo a psicóloga Mônica Vidal, perder o controle desse recurso tecnológico pode significar uma maior solidão, dificuldade de relacionar-se presencialmente com outra pessoa, ser muito tímido ou, o contrário, muito exibicionista. O descontrole na produção de selfies pode estar associado a transtornos como depressão, fobia social, transtorno afetivo bipolar e dismórfico corporal. 
 
“O transtorno dismórfico corporal caracteriza-se pela preocupação excessiva com a aparência física que leva a prejuízos concretos na vida do sujeito, como isolamento social, anorexia, bulimia, automutilação e até mesmo suicídio”, observa a especialista. Esse foi o caso de um jovem britânico que chegava a postar 200 selfies por dia com o propósito de tirar a foto ideal. Não conseguiu e foi salvo de um suicídio pela mãe.
 
O excesso de exibição pode assumir patamares perigosos. Atualmente, a última moda em autoexposição é a selfie pós-sexo, que tem se popularizado principalmente entre jovens e adolescentes. Fernanda Seabra diz que vivemos na sociedade da performance, em que tudo é ligado à imagem e em que as ações passam a não fazer sentido. “E o que não tem sentido, tem pouco sentimento. Tudo está muito racional. Estamos em um momento de rever valores.” 

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